O refúgio do Urutau – Por Caco Belmonte

Meu avô costumava se refugiar nos fundos do pátio, enfiado na meia-água de madeira com o telhadinho avançado que fazia as vezes de varanda. Lá dentro guardava as ferramentas e o material de pesca, facas campeiras, facas comando, facas de lâmina curva para os filés de peixe, facões, espada, ponta de baioneta, duas ou três espingardas em boas condições, acondicionadas em estojos de couro ou lona militar, cartucheiras de vários calibres e muitos vidros bizarros, espalhados por todos os lados, acomodados em prateleiras afixadas às paredes. Eu passava horas absorto naquela coleção de horrores. O enorme couro de sucuri estendido de fora a fora. Animais empalhados, potes de vidro com cobras, escorpiões e aranhas conservados em formol. Cabeças de surubim, piranha seca, arcadas de tubarão, pé de coelho, guizo de cascavel, lascas de pedras com fósseis de plantas e bichos esquisitos, pele de onça, armário de tralhas, uma escrivaninha empoeirada e o baú inescrutável. Fotografias amareladas, presas com fita adesiva ou ajustadas nas frestas entre os encaixes das paredes. Imagens de locais que eu admirava com ar de encantamento, paisagens de cachoeiras e rios caudalosos, homens brancos posando ao lado de índios, caçadores paramentados, gaúchos a cavalo e pescadores em acampamentos às margens de lagoas, igarapés, terrenos pantanosos. Tropa de milícia numa gare de estação férrea, meu avô em armas e trajes revolucionários e a vó com uma expressão de incredulidade, miudinha a ponto de ficar ainda menor do que já era, apavorada, com a cara de tacho.

A partir deste ponto, o que passo a narrar remonta ao finalzinho dos anos setenta, um tórrido janeiro na localidade de São Marcos, Uruguaiana, à beira do rio Uruguai. No outro lado o solo argentino, visível a olho nu e mais nítido se aproximado a binóculo. As barrancas, os capões e a mata fechada, pedaços de campo aberto, chalanas de pescador amarradas às margens. De vez em quando, homens fardados em barcos metálicos cinza-chumbo, numerados em letras pretas, uma metralhadora de grosso calibre apoiada em tripé giratório protegido por uma couraça na casamata de proa. Ao lado o pequeno mastro, envergado, revoluto com o tremulante pavilhão azul e branco. Para mim, apenas patrulhas em movimento cotidiano, sequer desconfiava que o país vizinho amargava anos de chumbo, mas conhecia um pouco da nossa realidade, o tanto quanto era possível a uma criança, por causa das discussões em família. Meu tio oficial do Exército Brasileiro e o avô materno uma liderança do antigo partidão. O “Urutau Vermelho”, marcado na paleta desde que retornara do exílio, cassado em seus direitos fundamentais e até expropriado, uma vez que perdera a titularidade de um cartório de registro de imóveis cuja matrícula lhe fora assegurada no governo Getúlio Vargas, por intermédio de Batista Luzardo, num daqueles emaranhados ideológicos paradoxais, embora não muito distantes do que enxergamos hoje, ou desde de sempre, nos bastidores da intrincada política brasileira, orgânica por fisiológica.