Especial o Guaíba e nós: que diferença faz ser lago ou rio?

Na parte anterior do especial O Guaíba e Nós, vimos que a falta de consenso acerca da denominação adequada, lago ou rio, é histórica e técnica, já que são observadas características de ambos no Guaíba. Mas, na prática, qual é a diferença entre distingui-lo como lago ou rio?

A questão da denominação correta do Guaíba é polêmica, histórica e muito técnica, já que é possível encontrar características geomorfológicas tanto para a definição de lago quanto de rio, com pesquisadores renomados, argumentos sólidos e estudos científicos para ambos os lados da discussão. O fato é que, para o poder público e todos os documentos vigentes, o Guaíba é um lago desde decretos na década de 90, o que só evidenciou ainda mais a faceta política desse debate e acalorou ainda mais as discussões.

Porque a questão de o Guaíba ser chamado de lago ou rio não é meramente semântica, é também jurídica, já que a legislação ambiental brasileira determina que as Áreas de Preservação Permanente (APP) de rios e lagos têm tamanhos diferentes. Em rios, a largura da área varia entre 30 a 500 metros, enquanto em um lago é de apenas 30 metros. Diante desse cenário, houve muitas críticas ao decreto oficializando o Guaíba como lago, sob a alegação de que essa classificação favorecia a especulação imobiliária, já que a área protegida por lei diminuía consideravelmente.

Descarga de um rio?

Entre aqueles que contestam e acreditam que “não é um motivo científico, mas comercial” que sustenta a classificação do Guaíba como lago, temos Elírio Ernestino Toldo Júnior, geólogo e professor da UFRGS. Seu trabalho com medições desde 2005, apresenta dados que, segundo seu julgamento, seriam suficientes para comprovar que a descarga de água do Guaíba para a Lagoa dos Patos, com vazão média de mais de mil metros cúbicos por segundo, é típica de uma descarga de rio. Ainda segundo Toldo, também a descarga de sedimentos do Guaíba para a Lagoa dos Patos seria típica de um rio, com mais de 1 milhão de toneladas por ano. E “lagos não exportam sedimentos; pelo contrário, são importadores”, argumenta ele.

Acúmulo de água como um lago?

Mas, segundo uma das maiores referências técnicas para a atual classificação do Guaíba, o geólogo Rualdo Menegat, coordenador geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre, proteger o Guaíba passa, necessariamente, por reconhecer e lidar com suas particularidades como lago. Segundo Menegat, uma das principais características do Guaíba é justamente o acúmulo de água trazida por seus afluentes e a sua dinâmica de escoamento, que inverte seus fluxos, típicas de um lago.

Já o geógrafo e morador da Zona Sul Rodrigo Rocha, que acompanha o debate sobre o Guaíba há décadas, colaborando imensamente para esta matéria, é preciso considerar as características que podem contribuir para melhores práticas de gestão. Por exemplo, os regimes de onda, que afetam diretamente na sedimentação de rios e lagos de forma diferente. Ele cita como exemplo um estudo que propôs e redefiniu os limites submersos do Parque Estadual de Itapuã, pois os sedimentos que chegavam às praias começavam a ser afetados pelas ondas em certa profundidade, o que, salienta, não é um comportamento esperado de se encontrar em um rio. Rodrigo afirma que, “do ponto de vista do reconhecimento de referenciais técnicos para criação de planos de gestão e estratégias de manejo, a classificação de lago parece funcionar melhor para o Guaíba”, já que sua proteção depende do reconhecimento de suas fragilidades e particularidades.

O tempo de permanência das águas e a deposição e capacidade do ambiente de remobilizar esses sedimentos também devem ser entendidos diferentemente ao se pensar em lago ou rio. Aliás, a sedimentação é um fator determinante para proteção de lagos, já que impõe limitações inclusive à mineração, justamente por ser um ambiente lento, onde poluentes já sedimentados poderiam ser remobilizados pela atividade mineradora. Pela mesma razão, Menegat alega que o fato de a legislação proteger uma área maior em rios do que em lagos só demonstra que “se deveria mudar a lei, já que lagos são muito mais vulneráveis, por manter a água e os sedimentos em seu reservatório”.

Rio ou lago, o Guaíba é único, e deve ser tratado assim

Apesar das discordâncias e debates por vezes acalorados, se é lago ou rio, existe, sim, algum consenso entre quem se propõe a discutir com honestidade a classificação mais adequada para o Guaíba. Essa discussão tem como pano de fundo, cada um à sua maneira, o objetivo de conhecer, de valorizar e de lutar pela sua preservação. Podemos perceber que existem várias divergências do ponto de vista da geomorfologia, e que isso traz implicações políticas e históricas no entendimento do porto-alegrense com relação ao seu principal manancial. Mas, o mais importante nessa questão são os planos de manejo e de conservação dos recursos hídricos, além das práticas de despoluição, já que lagos e rios têm comportamentos diferentes e, portanto, preservar o Guaíba requer, também, políticas e práticas de gestão que considerem tanto as suas características e especificidades de lago quanto de rio.