O Deus do edredon e o Deus do sereno – Por Luíz Horácio

Falei com ele anteontem, estava bem. O que aconteceu?

– Morreu, acabei de te dizer, e tu vem com “o que aconteceu”? Morreu…acabou, não é o suficiente? Veio aquele carro da prefeitura, botaram ele dentro do saco preto, e levaram. Acabou. Vou cuidar do Faísca, gostamos bastante um do outro, ele está meio desacorsoado, mas daqui a pouco acostuma, tem ração aí no teu carro?

Acabei de voltar da igreja, vistes os tênis que ganhei? Não, não… costumo ir na outra, a da esquina, o padre desta aqui não me passa firmeza. Sabe como é, me senti uma criança ingênua nas duas vezes que assisti missa com ele. Esses caras são muito estranhos. Tenho frequentado bem menos, minha relação com Deus será particular, embora unilateral. Acho que sabe tudo de mim, e dele sei apenas de ouvir falar.

Tenho pensado muito nessa palavra, Deus. Isso mesmo, Deus é uma palavra.

Mas admitamos que seja algo, alguma coisa, pois bem, será que o teu Deus é o mesmo das pessoas que vivem na rua? Se tua resposta for sim, temos um grande problema. Tu não acha que, Deus, sendo uma realidade, milagres deveriam ser coisas comuns? Parece que tudo depende muito mais de nós, se nos comportarmos, se seguirmos as regras, se rezarmos, se não trairmos, se formos empáticos, e Ele?

O teu Deus e o meu.

Maria Rita, filha do Renato e da Aline, nascerá em fevereiro, estamos em setembro, tu acreditas que até lá eles terão saído da rua? Imagina um bebê andando pra lá e pra cá dentro do carrinho das coisas recicláveis, pensa no tamanho dessa merda. A criança sendo amamentada nos seios de quem não toma banho.

O teu Deus e o da Maria Rita.

Estamos conversando porque tu sabes muito bem a importância do diálogo, mas isso não acontece com Deus, já te disse, é uma relação unilateral. Pode se chamar de relação? Percebi que nós cuidamos muito mais de Deus do que ele de nós. Mantemos seu nome na ordem do dia, rezamos, toleramos seus intermediários, enquanto perambulamos, dormimos, e acordamos pelas ruas das cidades, não estamos nos planos dos governantes e muito menos nos projetos divinos.

O teu Deus e o meu.

Estamos no final do inverno, mas noite passada fez quatro graus, o teu Deus sob o edredon e o meu, sob o sereno, tu acredita nisso? Acho que existem muitos deuses e um, o maior, na coordenação, mas perdeu o comando e ninguém está desempenhando seu papel. Tu entendes que seja indispensável acreditar?

Hoje estamos aqui, logo adiante uma avenida movimentada, ao alcance dos olhos que quiserem nos ver, mas tem muita gente vivendo nas ruas das periferias da cidade, solenemente ignorados. A desgraça no meio da miséria, do desalento.  Conhecestes a Lidia, ela agora está lá no bairro São Geraldo. Essa mesma, a coitada tem problemas mentais. Quer saber por quê? Ela e o Nélio dormiam embaixo da última ponte que tem aqui no arroio Dilúvio antes de chegar ao Guaíba. Ela descobriu que estava grávida no quarto mês. Teve o bebê sozinha, sim, fez todo o acompanhamento no posto de saúde da João Pessoa, mas quando chegou a hora, fazer o quê? telefonar, chamar táxi, entrar no carro dela? Teve a criança ali mesmo, o Nélio, como sempre, derrubado pelo crack. Assim como a criança nasceu, sem verificar se guri ou guria, jogou no Guaíba, meio da noite, nem chorar a infelizinha pôde.  Me diz, pra ti, ela matou a criança ou a privou do sofrimento? Quando soube escrevi um poema: a reta é clara/ mesmo no escuro/ o muro é duro/ embora tijolo fino/o sentimento é puro/ inclusive o assassino.

 O teu Deus e o da Lídia.

Ninguém tomou conhecimento do acontecido, na escuridão, escapou inclusive dos olhos de Deus. Se tu estivesse lá com a tua câmera, tu fotografaria? Tem uma coisa muito estranha na fotografia, ao mesmo tempo que mostra aquilo que não posso ver também obriga o fotógrafo a ver o que ele não quer. Vai me dizer que tu gosta de fotografar a gente? Mas de longe, é claro, a maioria tem piolho, sarna, e muita sujeira; cara! Tu não pretendes criar piolhos nessa tua cabeleira, claro que não.

É, Luís, todos nós guardamos um monstro no porão. Nem sempre pra sempre!

Vou à igreja porque preciso saber o que acontece por lá, não quero ser apanhado de surpresa, penso muito sobre o assunto Deus.

Isso mesmo, Deus é um assunto.

Anteontem também foi o último dia que vi o Nico com vida. Ontem fui acordado pelo barulho do carro e das pessoas que levaram o corpo. A gente saía junto para catar material reciclável, na ponte da Barão a gente se separava, ele ficava com o lado do Jardim Botânico e eu com Jardim Carvalho, Jardim do Salso. Hoje não saí, tirei o dia pra pensar no meu amigo, sei que sentirei muita falta.

Deus é uma ausência.

Tu deves conhecer muita gente que não conclui frase sem dizer “se Deus quiser”, eu também dizia, mas de tanto Ele não querer, parei. Hoje vou tomar um porre, a cachaça está dentro do carrinho. Tiro daquela garrafa de vidro e distribuo em garrafas de plástico, aquelas de água mineral, pra não correr o risco de quebrar.

Já te sentistes só? Pergunta estúpida, se tu és escritor e fotógrafo é sinal que tua solidão é imensa. Solidão é quando o pensamento não encontra aliados, ou encontra muito raramente, o nome exato mesmo é tristeza, solidão é só um disfarce. Hoje vou tomar um porre, me diz uma coisa, Deus está mais presente na vida ou na morte? Mas as borboletas se enfeitam pra morte.

Deus é uma dúvida.

Quase esqueço, me falaste daquela mulher que também mora embaixo de uma ponte, tu dissestes que roubaram o gatinho dela. Sei quem foi. Sabe o que fizeram? Venderam. Filhos da puta. Na rua é assim, Luís, ninguém se importa com o sentimento do outro. Venderam pra comprar uma pedra. O gatinho virou fumaça. Filhos da puta.

Pena que tu vai embora, cara, ainda é cedo. Não esquece a ração, dissestes que tem no carro, mas não tirou de lá. Faísca ainda não comeu. Mas tu precisa ir agora, tem certeza? Te incomodei com minhas ideias sobre Deus? Cara, consegue um radinho? Sem pressa. Só mais uma coisa, o último item; diz aí tua definição de Deus, pode ser?

– Deus é um defeito quase perfeito.