Os olhos e as mãos de Heloísa – Por Luíz Horácio

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A gente pegou a carrinho e saiu, espairecer, andar um pouco, e tem que levar o carrinho pois já nos roubaram um. Se deixar embaixo da ponte, carregam. Não é gente daqui, e levaram de tarde, eu tinha ido com ela pegar uns remédios e quando voltamos… Mas como eu tava dizendo a gente estava andando, andando, e ela disse que queria ter um gatinho, pois tu vai achar que é mentira, não é que andamos uns dez metros e apareceu este aí…e já pulou no colo dela, Deus é muito bom pra ela. Basta pedir, se for com sinceridade e com o coração, que Ele atende.

Não, tu não pensaste em coisas materiais, só um idiota pediria dinheiro, carro, a Deus. Ela pediu uma vida para acompanhar a dela. Isso é coisa de se pedir a Deus. Amor. Eu sei que não passou esse pensamento rude pela tua cabeça. Tenho certeza.

Meu nome é Carlos, mas me chamam de Mendonça. O meu é Heloísa, Heloísa massagista, Heloísa da ponte, Heloísa da casa do cachorro, pode me chamar como preferir. Este é o Black, mas o Black não é meu, às vezes nos acompanha, mas ele mora na praça, lá onde tem três casas de cachorro. Sabe que teve uma época que eu dormi numa daquelas casinhas, pois é, magrinha, me encolhia. Dormi lá.

Vim pra rua porque eu era usuária de droga, crack, de vez em quando ainda uso, mas a vida é boa, mesmo vivendo na rua. A gente dorme embaixo da ponte. Claro que pode fotografar, querido. Nossa, olha Mendonça, ficou muito bom. O nome dele é Sheik, e é tratado como um sheik, ele que escolheu andar aqui no meu cangote. E desde quando gato cai? Gato é sinônimo de equilíbrio e a gente que vive essa vida, precisa de um gato para harmonizar nosso espírito. As pessoas deviam valorizar mais os gatos. Valorizar aqui não quer dizer valor, preço, quantificar, nada disso, significa prestar atenção, ouvi-los. Eu sempre conversei com os gatos, por que tu achas que o Sheik veio ao meu encontro? Estamos conectados.

Temos onde cozinhar, sim. O Mendonça ganhou uma grelha, a gente catou uns tijolos por aí, é o nosso fogão. Uma cesta? Claro que nós queremos. Muito obrigado. Como é teu nome? Luís, gostei.

Deus te pague, Luís. Vai até a praça ver as casinhas? Vai ver que duas estão ocupadas, a outra é a do Black.

Pode fotografar. Sou parecida com uma amiga tua? Eu li uma vez que existe por aí, geralmente num lugar muito distante, uma ou duas pessoas muito parecidas com a gente, já leu isso também? Eu acredito. Acredito muito mais no oculto do que naquilo que está exposto. O que a gente vê não surpreende, estou certa?

Posso dizer que um fotógrafo vê duas vezes? Uma assim como eu também vejo e outra, é claro que tem sua interpretação, da forma como aquela cena te interessa. Mas eu, você, e sua porção fotógrafo somos todos dependentes da luz. Um dia uma mulher olhou pra mim com fisionomia rude e me chamou de criatura obscura. Criatura, um ser despersonalizado, não foi o bastante, ainda me chamou de obscura. Eu não sou obscura, tenho certeza. A vida é. Como é que é, repete, presta atenção, Mendonça: uma pessoa com seu sorriso jamais será obscura. Ouviu bem, Mendonça? Lindo. Muito obrigado, Luís.

Essa mesma mulher ainda me disse, bem assim: tu não podes nem contigo ainda carrega um gato. Por que não posso ter gato, só por que vivo na rua? Foi aí que perguntei pra ela: a senhora pode explicar por que ele não foge se não está amarrado? Claro que não respondeu.

E a outra cesta que vi no teu carro, tem pra quem dar? Mas se tu não encontrar ela, leva pro Marcelo. Tchau querido.

No trajeto até o paradeiro de Marcelo passei a ver em cada rosto o sorriso de Heloísa, seu cabelo preso, seus olhos claros, as mãos delicadas e as unhas ainda pintadas de azul. Olhos e mãos suavizando a vida do Sheik e a do Mendonça. A simplicidade de suas roupas, incapazes de limitar sua beleza, emanavam incrível limpeza. Encontrá-los deve ter um motivo, devo procurar?

Fotografei-a, tenho sua aparência, nada a ver com memória, amanhã poderei rever Heloísa. Guardo sua aparência, assim como seu significado. Guardo em segredo. Segredo que sequer divido, ou dividirei com Heloísa? Memória é o que não se verá jamais.

Heloísa disse para eu vir até você e entregar uma cesta básica, sabe de quem estou falando?

Heloísa dos olhos acesos? Querida!!!

Eu pego lá. Deixa eu pegar meu rádio, estava escutando um programa de futebol, o cara dizia que o Edmundo foi melhor que o Gabigol. Eu vi o Edmundo jogar pelo Vasco, em Caxias, contra o Juventude. Aquele homem jogava demais! E jogou bem todos os times por onde jogou, já o Gabigol fracassou na Europa.

Sim, cozinho lá no Parque Marinha do Brasil. Tu me consegues um saco de ração? Preciso pra hoje, mas tu não vais me encontrar mais aqui, tenho que tomar um banho, estou com uma fistula no ânus, está muito feio. Não tem como, não tenho documento, me roubaram tudo, agora só tenho meu rádio e as cobertas.

Vim pra rua porque sou soropostivo há quinze anos, tá vendo essas manchas aqui? Não lembro a última vez que tive trabalho, vivo do que me dão. Prefeitura? Ora, prefeitura…

Hoje tu não vai me encontrar mais aqui neste lugar; bah!, essas latinhas vão quebrar o galho deles por enquanto, mas amanhã tu traz ração? Se chover tu me encontras lá na Érico Veríssimo, tem uma marquise enorme, fico lá quando chove. Cara, os olhos da Heloísa…nem mesmo o crack espantou o brilho deles. Faz mais de mês que não vejo ela. Tem foto dela aí, posso ver?

Ah! o Mendonça, esse é um irmão que Deus me deu. Cara, tenho que ir, preciso tomar banho, como é teu nome? Nome de rei, nome de rei…Luís XIII, Luís XIV, Luís XV… mas não esquece de trazer a ração, por favor. Escuta, qual deles foi o Rei Sol? O XIV, e eu jurava que era o XIII, mas tem razão, desse pouco falam.

Só mais uma coisa, Luís, consegue pilhas pro meu rádio e algum livro? Gosto de ler. Essa merda tá doendo, Luís…