O poema e a fotografia do frio (da solidão) – Por Luíz Horácio

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Aqui neste lugar? Vai pra dois anos. Por um tempo dormi numa garagem lá pros lados do Iguatemi. No inverno, porque no verão eu gosto de pegar o ar da noite, a gente acostuma.

Foi alegre e foi triste a garagem. Eu vivia por aqui onde estou agora, quer dizer, nós vivíamos. Eu e o Elias. Não é o que tu estás pensando, Elias era o meu cachorro, homenagem a Dom Elias Figueroa, o melhor jogador que vi jogar. O cara jogou uma Copa do Mundo sem cometer falta, por aí tu podes imaginar a categoria do homem. E tem mais, ele gostava de poesia, declamava Pablo Neruda. Conhece?  Puedo escribir los versos más tristes esta noche/Escribir, por ejemplo: “La noche esta strelada, 
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos”. 
O título é Poema Vinte.

Onde eu estava? Ah! a garagem, pois bem, numa noite, instalei minha barraca junto ao muro de um estacionamento, pela manhã, bem cedo, eu estava sentado na frente com o Elias no colo, um poodle, e passou uma moradora do edifício vizinho, e me olhou de um jeito que não gostei. Não demorou pra chegar a Brigada Militar, a mulher me acusou de roubo, eu teria roubado o Elias. Onde já se viu morador de rua com cachorro de raça. Ela justificou assim a acusação. Fiquei calmo, às vezes eu consigo, e disse ao brigadiano que podia provar a procedência do Elias. Com toda paciência eles me levaram até o edifício onde morava a senhora que me deu o cachorro. Ficou tudo esclarecido. No mesmo dia desmontei minha barraca. Era maio e já fazia frio. Foi aí que começou a história da garagem. Novamente instalei minha barraca junto a um muro. No final de maio um senhor, gente finíssima, parou pra conversar comigo, lembro como se fosse hoje, no relógio da rua onze graus. Ele apontou pra casa dele, garagem pra três carros, mas só tinha um lá dentro.

– Quer dormir lá? Mas tem que sair cedo, eu disse dormir, não falei morar.

Aceitei no ato. Mas aquela noite a temperatura foi a seis graus e na madrugada ele apareceu na garagem, trazia uma garrafa térmica com café, sanduíches e um cobertor. Acho que foi a melhor noite da minha vida. Ele repetiu.

– Tem que sair cedo, as crianças não podem te ver.

Em seguida eles viajaram e mesmo assim cumpri a regra, dormia e saía bem cedo. Um dia ele veio falar comigo.

– Vou providenciar um lugar pra ti, me sinto muito mal contigo dormindo aqui no chão enquanto estou no ar condicionado, não posso te levar lá pra dentro, vou dar um jeito nisso.

E o cara alugou uma casa pra mim na vila Bom Jesus e ainda me dava uma grana todo final de mês, até que…

– Até que…

– Vou te dar a real, Luís, quase todo mundo que está na rua tem passagem, e…

– Passagem?

– Passagem pela cadeia. Eu vinha pela Protásio, cara, quase meia noite, vi quando uma guria desceu do ônibus, tudo escuro, por falar nisso já reparastes que Porto Alegre é escura em qualquer lugar, até nos bairros bacanas, imagina na área da Bonja. A guria chamou minha atenção, muito bonita de corpo, um homem também chamou minha atenção, ele seguia a guria, ela correu, ele correu, também corri, na mesma direção, é claro. O desgraçado pegou a pobrezinha e já foi rasgando a camisa, aí meu sangue ferveu, peguei a primeira coisa que encontrei, um pedaço de pau e parti pra cima, dei no meio da cara, uma, duas, quatro vezes. Ali ficou. De novo, brigadiano na minha vida, resultado: puxei três anos, 8 meses e dezenove dias, tentativa de homicídio, o desgraçado não morreu, agora anda de cadeira de rodas, não fala, baba o tempo inteiro. Tarado tem que se fuder, não me arrependo. E depois de ter passagem não se consegue mais nada, Luís, somente a rua pra nos aceitar.

Consegue ração pro Enio? Eu ia botar o nome dele de Cruyff, mas aí pensei morador de rua chamando cachorro de “cróif”, é assim a pronuncia correta, não ia prestar, optei por Enio. Tem a ração? Mas é pra raça pequena? Ótimo. Depois que ele comer, tu podes fotografar. Não se deve trabalhar de barriga vazia. Semana passada eu estava te olhando enquanto fotografavas a mulher dos gatos, aquela ali da Santana, e fiquei pensando: a fotografia é uma arte interessante, quer ver? Ela torna vivo o que passou e ao mesmo tempo congela o que está vivo. Transforma um instante num pra sempre. Penso que todo mundo devia fotografar, por exemplo; apontar a câmera para um passarinho em pleno voo e capturá-lo, guardar o movimento, depois olhar, refletir sobre a existência daquele ser e a sua, imaginar a função de ambos nesse mundo. Seria interessantíssimo, as pessoas seriam menos explosivas. Já pensastes nisso? Claro que pensastes, tu de burro não tens nada.

Por falar em fotografia, ontem eu estava assistindo o noticiário na tv do bar, em São Paulo um fotógrafo foi convidado por uma galeria pra realizar uma exposição do fotos sobre a expansão de um cemitério. Devido a essa doença. São várias fotos de covas abertas. Fiquei chocado, mas é o trabalho do cara, e as pessoas foram ver. Garanto que tuas fotos da mulher dos gatos são mais interessantes que fotos de buracos. As dele mostram o que não tem mais volta, enquanto as tuas apontam pra algo que não devia ser do jeito que está, algo que precisa ser transformado. Agora pode fotografar o Enio.

Luís, tu conheces algum dono de posto de gasolina? Cara, é meu sonho trabalhar num posto, como é que chama a atividade? Frentista, isso aí. Ver gente diferente todos os dias, uma pessoa dirigindo um carro é um espetáculo, gosto de ver as pessoas bem. Me apresenta a um dono de posto, por favor. Não uso nada, quando tenho dinheiro bebo cachaça, mas nunca fiquei bêbado. Acredita em mim, Luís, por favor.  Quando que tu vais entregar os cobertores? Se tiver roupas e calçados que não sejam mais de teu uso, ou dos teus amigos…Fotografou?  Agora coloca a câmera no automático e, não, é perigoso, passa muita gente. Vem comigo, aquele motorista de táxi é do bem. Explica pra ele como funciona, quero uma foto contigo. Luís, está lá, no Poema Vinte:

Es tan corto el amor y (es) tan largo el olvido

Espera, antes que te vá; se te pedissem pra fotografar o frio, como seria? Não, os pés descalço de uma criança sobre a grama coberta de geada, não, ridículo. Eu fotografaria uma pessoa andando numa rua deserta. Solidão é sinônimo de frio. Lembre; a fotografia é o óbvio que não deve ser óbvio. Pensa nisso. Agora pode ir.