O bicho-da-seda e a fragilidade da delicadeza – Por Luíz Horácio

Tudo pode acabar de um minuto pro outro, Luís, nossa fragilidade é espantosa. Não adianta nos defendermos daquilo que conhecemos, é exatamente o desconhecido que nos ameaça. Pode fazer seu check-up anual, ser vegetariano, tu não sabes o que acontece dentro de ti. Até mesmo uma emoção forte pode matar. Viver é uma delicadeza, nós devíamos fazer jus à vida sendo também delicados em todas situações, ação, diálogo, observação. O bicho-da-seda, nunca vi esse bichinho, mas considero a síntese da vida. E o que o torna ainda mais delicado é o fato de depender do ser humano. Pensa bem, um bichinho em plena infância, isso mesmo, quando adulto ele se transforma numa mariposa; depender de gente como nós, apressados, toscos, muito triste…Foi o homem que os presenteou com essa dependência, resultado da exploração dos delicados indefesos. Dinheiro, Luís, dinheiro. Esse bandido que não respeita vida. A delicadeza é sempre frágil? Não responde…não responde…vamos ver se eu encontro a resposta. Tu achas que é possível ser delicado vivendo na rua? Penso que meu corpo embruteceu, mas conservo um pensamento delicado, acredito que me comporte bem, mas até mesmo a natureza apresenta seus momentos de brutalidade, a trovoada, o raio, uma brutalidade devastadora, então também posso, de vez em quando, ser…ser…áspero. Às vezes me descontrolo, Luís, geralmente quando bebo demais e também ao presenciar alguma injustiça. Ano passado, próximo à rodoviária vi dois policiais dando uma dura num cara, um negro magrinho, o cara estava chorando…chorando, sabe o que é isso?  Um homem chora quando dois sentimentos se unem dentro dele, medo e solidão. Fui pra cima dos caras, cheguei por trás, dei um soco nos cornos de um deles, caiu, acho que o outro me bateu com o cassetete, acordei numa cela de delegacia. Fiquei um dia preso, não comi nem bebi nada do que me ofereceram. Aceitar significaria concordar. Mas a brutalidade nem sempre quer dizer agressividade, quer ver? Reciclo lixo, recolho material na rua, as pessoas não separam o lixo, isso é brutalidade. Tu reciclas, teu vizinho não dá a mínima pra isso, de que adianta? A brutalidade sempre vence, alguma coisa ela produz que lhe rende novos adeptos. Pensando melhor, a brutalidade é agressiva. Essa noite dormi no parque Marinha do Brasil, bebi cachaça além da conta, quem me acordou foram os quero-queros. Fiquei impressionado com o barulho que eles fazem, como pode sair de dentro de um bichinho daqueles um som tão alto!!!E como os diferentes pássaros emitem uma quantidade variada de sons, e cantos! Inclusive um ser precário como eu pode admirar, escutar a música vinda de um pássaro é banhar o cérebro, estar vestido de vontade de viver. Estou me sentindo diferente, Luís, é normal isso? Sabe como estou me sentindo? Um domador de obstáculos, eles sempre existirão, preciso apenas criar uma relação amistosa com eles, até se amansarem e então negociarmos minha passagem. Quer viver em paz? Aprende a negociar com dois personagens, obstáculos e ausências.

Mas não é bem sobre isso que estávamos conversando, era sobre delicadeza. Vem comigo até o barraco, quero te mostrar quem, desde ontem, está me ensinando a ser delicado e cuidar da vida com essa delicadeza, me acompanha.

Aqui, ó, este é o Noah, botei esse nome em homenagem a um tenista que ganhou o torneio de Roland Garros, categoria simples, em 83, no ano seguinte ganhou nas duplas. Yannick Noah, resolvi reduzir, facilitei para o cachorrinho. Eu vivia em Paris nessa época, vinte e poucos anos, nasci no Senegal, meu nome é Mor. Como vim parar no Brasil? Mulher. Conheci uma carioca, em Paris mesmo, larguei tudo, tinha uma banda com outros músicos africanos, e fui morar no Rio. Tudo ia bem até a doença de Isabel, não gosto de lembrar, doença degenerativa, distrofia muscular, morreu porque não conseguia comer, respirar… Fiquei no apartamento dela por mais dois meses, um dos irmãos que nunca simpatizou comigo, não sossegou enquanto não me viu na rua. Um dia um gaúcho me convidou para tocar aqui em Porto Alegre, mas não ganhava o suficiente, comecei a usar drogas e a consequência está falando contigo. Olha bem pro Noah, bonito não é?  Sou de 1960, muito tarde pra mudar qualquer coisa em minha vida, e agora estou obcecado pela delicadeza, Luís. Posso dizer que é meu objetivo final, entender a delicadeza e viver e amar nesse compasso. Também é tarde para pensar em mulher, minha preocupação não tem a ver com o corpo, o que importa é o aspecto sutil do viver, entendestes?

Lembra de uma entre tantas perguntas que fiz? Perguntei se a delicadeza é sempre frágil? Quer responder? Primeiro escute o que elaborei enquanto conversávamos, completei o pensamento agora, pra ser exato, no momento em que chamei o Noah pra fazer a apresentação. Presta atenção: a delicadeza não é frágil, é extremamente forte, quer ver?, estás conversando comigo, nos fotografou, não teve medo de nada, puxou assunto, nos viu com os olhos do amor e o olhar da estética, a câmera colaborou, isso é forte, muito forte, Luís. Mas o idiota que estiver observando vai te classificar como um cara que não tem nada de útil para fazer, perde tempo dando assunto a morador de rua, dirá que és mais um carente, um fraco. Percebes? O idiota é um perigo, é capaz de te assaltar, levar tua câmera e trocar por uma pedra de crack, o idiota não percebe beleza no canto de um pássaro, é incapaz de relação honesta com um bichinho de estimação, e se acha forte, indispensável. O pensamento, do qual se arroga autor, geralmente é mera usurpação dos “sábios” da tv, mero repetidor de frases feitas, papagaio desbotado. Cara, não bebi nada, não tenho maconha, mas estou falando pra cacete, não estou te cansando?

Luís, percebestes que existe padrão pra tudo? Já te falei, nasci em mil novecentos e sessenta, tu acreditas, sinceramente, que ainda esteja em tempo de eu desmontar meu padrão? Cara, eu nunca quis padecer de uma amnesia que me obrigasse a esquecer de mim, lembro de tudo, todos dias, mas sem saudades, nem de Isabel sinto falta. O que passou é porque assim tinha que ser, sentir falta do impossível é burrice, não embarco nessa canoa furada, mas também não quero me entregar. O interessante é que não faz dez minutos que eu disse com convicção que era muito tarde pra mudar qualquer coisa em minha vida, acabo de me contradizer, mas contradição é fruto de quem pensa. É isso, meu amigo, acho que o Noah merece uma existência delicada, mas preciso de sua ajuda, me consegue um violão?

Meu querido, teu olhar delicado começou a desfazer uma imagem grotesca.

O quê…vai assim? E o meu beijo, e o do Noah?