Lembrança não exige quantidade – por Luíz Horácio

Muitas coisas mudaram, Luís, muitas. E todas provocaram dores, a pior foi esta aqui. Aqui ó, está vendo essa bolsinha nojenta? Agora cago por aqui, não precisa olhar mais. O inverno facilita, a gente está sempre coberta de roupas, o negócio fica escondido. Colostomia é o nome da merda útil que me levou à essa condição, realmente uma merda, mas foi a saída. Câncer, Luís, fiz cirurgia, por isso fiquei um tempo fora de circulação e tu não me vistes mais. Senti tua falta, senti ao ponto de me incomodar, tu acreditas? Estava no hospital e vi um filme que tinha um fotógrafo como personagem, Janela indiscreta, um clássico, naquele momento senti uma saudade como não lembro de ter sentido antes. Sabes que nunca te vi separado das tuas câmeras? É como te vejo. Mas passou, felizmente, e agora estamos aqui. Quanto tempo? Não sei, acho que pra sempre. O problema maior é a higiene, viver na rua e desse jeito torna tudo mais perigoso. Acho que não será por muito tempo, doença sem cura. E o pior, isso humilha a pessoa, me alimento mal, pouco, bem pouco; para não precisar cagar, consequência: o organismo enfraquece ainda mais, e ainda tem esses remédios fortes que preciso tomar.

É minha segunda doença, a primeira é a rua. Depois de chegar à rua, quase impossível sair. Por quê? Porque o crack te tira da rua, e cada vez que te devolve pra ela tu estás menos exigente e mais fraco. Tu vai acostumando…acostumando…até que esquece o que é dormir numa cama, o que é um banho, essas coisas. Acostumar, Luís, tenho pavor dessa palavra. Mas não desisti de tudo, não, quero chegar ao dia dois de agosto, se Deus me ajudar completarei meu quinquagésimo sétimo inverno. Tu estás com quanto? Sessenta e quatro, puta que pariu, um lixo!! Brincadeira, querido. Não cara, não quero comer nada, como comer se logo lembro dessa bolsinha?

Tem uma senhora, dois quarteirões em direção ao rio Guaíba, uma senhora idosa, garanto que ela está com fome, vai lá, ajuda ela. Percebestes a quantidade de mulheres vivendo na rua? Nem vou falar nas crianças, isso acaba com meu dia.

Luís, tu acreditas em Deus?

– Minha resposta não significará nada para você, não se interesse pelo que eu acredito ou deixo de acreditar. Nunca fiz esse tipo de pergunta. Por quê? Porque não estou interessado no que os outros pensam a respeito de Deus. Digo apenas uma coisa: é preciso pensar nisso.

– Por quê?

– Para não ser enganado. Muitos se aproveitam da inocência, da ingenuidade, para, em nome de Deus, oprimir, subjugar; outros, pensam que acreditar em Deus é sintoma de indigência intelectual. Por isso é importante fazer essa reflexão.

– Não sei se entendi, mas vou pensar. Tenho dúvidas, sabe por quê? Digamos que Deus exista e tenha criado tudo, precisava criar a mentira? A gente mente o tempo todo, Luís. Tu conheces o Jaime, ele dorme lá na rua Botafogo, lembrou? Pois é, ele batia na mulher dele, todos os dias, e ela dizia que estava tudo bem. Mentia todos os dias. Até que uma vizinha denunciou e ele foi preso. Quando foi solto, não podia voltar pra casa, ficou na rua. Outra: se eu te perguntar se tu sentes nojo da minha bolsinha, como tu é um cara educado vai dizer que não, mentira. Por quê? Poupar o outro ou enganar? Prefiro a realidade.

Aqui, faz uma semana, antes fiquei dez dias na Redenção, mal conseguia andar quando saí do hospital, era o lugar mais próximo. Agora com a chegada do frio, o importante é ter um muro, uma parte sólida pra gente se encostar, aí prendo a lona com as pedras no chão e durmo protegido, quer ver uma coisa? Espera. Olha aqui, este é o Horácio, encontrei na Redenção, abandonaram o pobrezinho, como eu estava sempre pensando em ti, desde o filme na TV, e estava com saudade; batizei com teu nome. Não vai ficar zangado, não é? Eu sabia. É uma homenagem. Ele dorme bem juntinho de mim, falei pra ele uma vez que não podia mastigar a bolsinha, ele nem encosta. Deve sentir um misto de respeito e nojo. Agora que acordei ele, faz favor, pode nos fotografar? Valeu. A propósito, falei de um filme, cinema é fantasia, uma mentira; assim como teatro, mera representação. E a fotografia, tem mentira na fotografia?

– Onde o ser humano estiver levará a mentira e sua ambição desesperada, às vezes apresenta ambos ao mesmo tempo.

– Não sei se entendi bem. Ambição, querer, acumular, ter, fama, reconhecimento? Aí vale tudo. E mentira? Seria o photoshop e essa infinidade de tratamentos que submetem as fotografias?

Quando a ambulância do SAMU me recolheu para levar ao hospital, me deixaram levar apenas uma mochila onde guardo no meio de um livro aquelas duas fotografias que me destes. Eu costumava olhar para elas quando a saudade apertava e eu pensava que nunca mais te encontraria, eu te via nelas, estranho não é, o fotografado era eu, mas quem eu via era tu. Sempre. Tu podes explicar isso?

– Não, não posso. Seria muita pretensão querer explicar o que o outro sente.

– É a segunda que tu não respondes.

– Vou responder: talvez a gente não minta o tempo todo.

– Luís, me deixastes confuso com a questão do desespero na ambição, o que é isso?

– Medo de ser esquecido, por exemplo.

– Tem remédio?

– Não sei. Talvez seja algo particular. O meu desespero acaba quando me imagino morto e minha ambição maior é ser lembrado por uma pessoa. Pra que mais?  A lembrança não exige quantidade.

– Meu querido, acho que estou com fome. Tu sabes que é preciso lavar a bolsinha com água morna? Quero fazer um pedido. Sei que não me resta muito tempo, quando eu morrer, por favor, leva o Horácio pra tua casa. Ele vai me ajudar a ser lembrado por uma pessoa. Pra que mais?