Escudo do egoísmo e refúgio da indiferença – por Luíz Otávio

Estou aqui vai pra mais de dez dias, consegue cinco reais? Tenho que estar no hospital logo depois do meio-dia. Marcaram cirurgia às duas horas. Onde?, na mão. Fratura. Caí de uma escada, olha aqui a receita da médica pra não dizer que estou mentindo, tem até radiografia, quebrou bem quebrado.

Parei com o crack faz uma semana, chega, já sou nego véio, quarenta e um anos, quatro anos nessa vida, deu.

Vou fazer meus documentos, assim que me recuperar da cirurgia, trabalhei em metalúrgica, em Caxias, trabalhei na construção civil com meu pai, ele tem uma pequena empreiteira, também fui segurança, tenho curso, mas aí comecei com o crack. Eu disse pra minha mulher; não vou me viciar, vou só experimentar. Que experimentar cara, com uma semana eu só pensava na hora que o traficante chegaria. Não demorou nem um mês pra  mulher me deixar; aí enlouqueci, fiz empréstimos, gastei mais de dez mil só em crack. Emagrei dezoito quilos e resolvi vir pra Porto Alegre. Não vou te mentir, roubei muito, invadi mansão, roubei pedestres, passei dois anos só roubando, me pegaram quando roubei um celular de uma mulher aqui mesmo na Av. Getúlio Vargas. Artigo 155, puxei nove meses. Saí e continuei na mesma onda, Já roubei loja em plena luz do dia. Chegava na loja, ia direto ao caixa. Olha aqui, me dá tudo que tem na gaveta na boa, ou tu vai querer na ruim? Eu já estava com a cara do capiroto, o caixa nem discutia.Vou sair dessa, estou na igreja, chega. Mas vou te dar a real do que aconteceu com a minha mão. Fui dar uma caminhada numa casa, e… Caminhada, roubar, entendeu? A polícia chegou. Os caras me pegaram, mandaram eu colocar a mão no meio fio e bateram com uma pedra, pedra grande, cara. Te mostrei a radiografia, está tudo quebrado. Foi minha última proeza, mas confia em mim, parei. Tem mais cinco reais pra eu voltar?

        Estou indignado, Luís, estava aqui e um cara estacionou o carro, um ford edge, no outro lado da rua e veio em minha direção. Pedi um trocado, ele abriu a carteira, só tinha notas de cinquenta e de cem reais, várias delas. O desgraçado abriu um compartimento onde se guarda moedas, tirou de lá vinte e cinco centavos e me deu. Joguei fora. O zelador daquele prédio assistiu a cena e veio: por que tu fizestes aquilo? Ele  não tem obrigação de te ajudar.

Anota o que direi agora, Luís, anota e pode colocar num de teus livros: “não tem obrigação é o escudo do egoísmo e refúgio da indiferença.” Fico puto quando escuto isso, ora não tem obrigação…não tem obrigação…estupidez violenta. As pessoas não têm obrigação com nada, nem mesmo de continuarem vivas, mas ajudar a quem precisa devia ser algo corriqueiro. Outra coisa que me irrita é a generalização, para muitos, morador de rua é tudo drogado, ladrão, uma ameaça, pois anota esta outra, tudo de minha autoria? “A generalização é o olhar vesgo da burrice”. Conversa mais comigo que vou te dar muitas frases. E hoje bebi o suficiente para estimular o cérebro e soltar a língua.

Mania de julgar os outros, cada morador de rua é um universo, tu sabes muito bem disso. Eles falam das drogas que eu uso e da cachaça que eu bebo, mas não sabem os tombos que eu levo. Anota esta também.

Cara, eu prefiro me mijar a tirar a piroca pra fora e mijar na rua, imagina se tu estás passando com a tua mulher, ou uma criança presenciar essa merda. Não é proibido me mijar, mas botar a piroca pra fora no meio da rua deve ser. Cada um vive do seu jeito.

Ah! e por falar em livro, tu sabes que li o teu livro, o Doralina, inclusive gravei uns trechos, este é um deles: “A morte é um susto que nunca acaba”. Quer outra? “amor não é paz, não é placidez, não é resignação. Amor é inquietação, é movimento, amor é revolução”. Mas tenho que te confessar uma coisa: vendi teu livro, sete reais. Mas tu sabes que eu te amo, não é? Morador de rua também sabe amar. Eu te amo porque tu és um revolucionário silencioso. Revolucionário silencioso, isso é profundo. Uma das coisas que eu amo é a fotografia, eu gosto quando tu me fotografas, quando aponta a câmera para meus cachorros brincando, tudo emoldurado pelo silêncio, fantástico isso. A fotografia, entre tantas aptidões, registra a circunstância humana, é isso. Qual é a ferramenta do fotógrafo? Não, não é a câmera, nada disso, é a sensibilidade. Tu sabes, te faz de louco. Eu avisei que hoje estou falante…além do habitual. Garanto que tu não sabes o que vou te dizer. Tu sabes que o Che Guevara era apaixonado por fotografia? Sempre que um fotógrafo se aproximava ele pedia a câmera emprestada e fotografava? Luís, conversa mais comigo, vai ser bom pra ambos, posso te garantir.

Cachaça e pilhas pro meu rádio, vou sair daqui, está começando a chover.