Crime de alienação é imprescritível – por Luíz Horácio

O que a cena a ser fotografada mostra? O que eu sinto?

O que eu sinto quando aponto a câmera, no momento de acionar o disparador? Essa eu posso responder: muitas vezes aquilo que não gostaria de sentir.

Por isso não saio de casa sem minha câmera, por vezes, mesmo dirigindo o automóvel, vem a vontade de colocá-la frente ao rosto. Medo de sentir em excesso. Ela desvia o ponto de vista sentimental e acende o olhar crítico, o olhar que não disfarça a verdade.

O que vejo antes de fotografar? Algo que me permitirá um diálogo após estabelecida a fotografia. O observador (presente) dialogando com a fotografia (passado)? Algumas vezes acusando ao invés de dialogando. O que você acha?

O quê, no final das contas para a fotografia o que importa é o aparente? Discordo em parte, materializada a fotografia ela ampliará os limites do espectador, desde que este ainda carregue traços de sensibilidade, do contrário se afogará na superficialidade de uma mera distração.

Deixemos a fotografia de lado, um homem velho, braço fraturado, o gesso quase marrom denuncia o tempo; vive na rua sob um amontoado de papelão e caixas, qual o primeiro pensamento ao assistir a cena? Antes de ser o que ainda é, agora, quem era este homem? Não existe investigação que ignore o passado.

-Gosto tanto de suas fotos de natureza, disse a senhora ao me ver fotografar um morador de rua dormindo, mas por que fotografar essa gente?

Disse a ela o que ouvi de meu pai no dia em que, antes dos meus dez anos de idade, pedi que me alcançasse a página de esportes do jornal. Ele separou os cadernos e entregou-me aquele que trazia notícias do mundo. Enquanto segurávamos o jornal disse, pausadamente, e jamais esqueci: O crime de alienação não prescreve.

Não entendi, disse a senhora. Mas se quis me chamar de alienada, não conseguiu. Apenas escolho aquilo que quero ver, pois logo após o ver vem o sentir, e não quero me aborrecer, até logo.

O morador de rua suscita várias investigações, passado, logo acima eu afirmei não existir investigação que ignore o passado. Mas por que investigar o morador de rua? Investigar é diferente de suspeitar. Investigar é se interessar, saber do outro.

Dona Mirtes, toda terça-feira, recebe Daisy, a diarista.

-Daisy, com y grega, pelo amor de Deus não me chame de Deise, tudo menos isso, Daisy, com sy fuerte, silaba tônica, isso, isso. Tu madre también era uruguaya, sei que me compreendes, Luís.

Daisy, por favor não leia Deise, por favor; foi indicada pelo porteiro do edifício onde vive dona Mirtes, que à exceção do nome da serviçal, desta nada mais lhe interessou.

Dia desses descobri onde a diarista mora. Não, não direi nada à patroa, tenho minha vida para cuidar e a de alguns outros para tentar ajudar. A vida de Daisy me diz respeito, a de dona Mirtes já diz respeito a muita gente, sobretudo àquelas relacionadas em seu testamento.

O homem velho de braço engessado não conversa, não gosta, também não pede nada. Desculpe, disse que ele não conversa, conversou apenas no primeiro dia.

Nos conhecemos faz um bom tempo, assim que me avista, repete o mantra:

-Quer fotografar, fotografa, fique à vontade, mas de longe e que eu não perceba.

-Por que de longe? perguntei quando da primeira vez do que se tornaria mantra.

-Porque a distância é importantíssima, permite que me veja, mas, com certeza, alguém estará vendo você. É uma oportunidade que lhe dou. Somos visíveis, apesar do despropósito.

-Despropósito?

-Isso mesmo, do absurdo da existência. Repare bem, eu e você, nos resumiremos a isso no momento. Eu sou jornalista, mas aqui nesta cidade não tem jornal, o que tem é algo semelhante a jornal de colégio, meros replicadores de conteúdo das agências, sem trabalho, sem dinheiro, rua, bebida, briga, fratura, essa merda que você está testemunhando. Agora vamos ver você, fotógrafo documentando a miséria com sua câmera caríssima, qual o sentido, pensa que vai transformar nosso cruel cotidiano, acredita nisso, quem vai se interessar por aqueles que não poderão retribuir materialmente? E viver é uma coisa acintosamente material, por mais paradoxal que lhe soem essas palavras, vai por mim, a vida exige coisas, porcarias, badulaques, está me compreendendo? Duvido. Agora me deixa dormir.

Quinta-feira, onze horas e quinze minutos, Daisy entra em seu barraco, segura uma cadeira em bom estado, numa espécie de mochila identifico pães, não sou visto por ela.

Manhã seguinte encontro Daisy, hora de faxinar mais uma casa. Vi você ontem quando chegava com a cadeira.

-Viu? Comprei da dona Dirce, cinquenta reais.Tchau.

Assim que alcançaram meus lábios constatei que minhas lágrimas de compaixão e raiva carregavam igual amargor.