As tartaruguinhas e o ladrão de momentos – por Luíz Horácio

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Tu não cumprimentas ninguém, já chega fazendo pergunta, bom dia, boa tarde não existe, mais esquisito impossível. Hoje será diferente, eu vou perguntar, e a primeira é esta: é possível começar uma conversa com desconhecido sem fazer uma pergunta?

Como pode ver, comecei com uma pergunta, e tu nem serve pra desconhecido. Em nosso primeiro encontro tu perguntaste, quer dizer a tua primeira pergunta foi: quanto tempo faz que você vive na rua? Depois seguiram outras.Tua vez, estou esperando tua resposta.

-É sempre mais fácil começar com uma pergunta, é uma surpresa, desarma o outro.

-Então vamos continuar. Esperas ganhar alguma coisa fazendo isso, trazendo comida, roupa, para nós, fotografando? Deste um rádio pro Marcelo? Fiquei sabendo, o radinho funciona o dia inteiro, haja pilha!!! E então, ganha?

-Se conseguir amenizar a fome, eu ganho.

-Boa essa. Não teme que alguém te ache intrometido, querendo saber coisas das vidas dos outros, e ainda tem as fotografias? Tu sabes muito bem que fotografou, guardou. Fica contigo, parece coisa de índio de filme, tu carrega alguma coisa do fotografado, quer queira, quer não; uma invasão, não te parece? Tem gente que não gosta que sequer olhe pra elas, imagina tu poder olhar sempre que quiser, fotografia é isso, o objeto sempre ao alcance, para lembrar…para lembrar…Nós não somos pessoas, somos símbolos…símbolos do fracasso…o apogeu da humanidade, o homem humilhando o homem. Conheço um cara que vive na Av. José de Alencar que é capaz de brigar se alguém puxar assunto com ele, disse que não quer ser reconhecido, que não gosta que vejam ele, “sou o ninguém, não quero virar hábito” costuma dizer. Ele não quer que reconheçam sua humilhação, seu fracasso. Às vezes uma simples oportunidade muda tudo, mas…

-Quando faço a pergunta não obrigo a responder. E quando fotografo é porque peço licença, se bem que tem algumas que fiz à traição mesmo. Ao pedir licença acabo interferindo na cena, sei que não deixa de ser perigoso fotografar certas pessoas sem autorização, mas o resultado compensa. Sem risco só se consegue o que não vale a pena. Vou procurar o “ninguém”.Não menosprezo seus sentimentos, mas até mesmo o “ninguém”  deve sentir fome e frio.

-A gente corre risco a toda hora e posso te garantir que não vale a pena.

-Viver vale a pena.

-Isso é frase pronta, coisa de almanaque, livro de autoajuda serve pra tudo, inventa outra.

-Você está conformado com essa situação?

-Claro que não, tá maluco!!

-Então seu inconformismo justifica a luta diária.

-Quase uma resposta pronta, mas aceitarei. Antes de te conhecer, quando apenas te observava, eu não gostava da tua pessoa. Pra mim tu era o cara que glamurizava nossa miséria, tudo em nome de uma boa fotografia. Sabe como é, fotografar gente com chinelo num pé e o outro descalço, realçar nossas sujeiras, nossas roupas rasgadas, fazer com que nos comparem a ratos e urubus quando muitos de nós andam por aí revirando lixeiras em busca de restos para matar a fome, quando dormimos abraçados a nossos cachorros para enganar o frio, quando catamos guimbas na impossibilidade de um cigarro limpo.Te considerava um oportunista escroto, não simpatizava contigo, de verdade. E, cá pra nós, tu deve ter muita foto da minha pessoa que fizeste sem meu conhecimento, é ou não é? Não, não responde. Eu sei. O fotógrafo não deixa de ser um ladrão de momentos, o que te parece, gostou dessa definição?

Faz tempo que tu está nessa, não é? O quê, tudo isso? Sabe quando passei a te respeitar? Não, não foi quando descobri que trazes coisas para pessoas que vivem na rua, quando me dei conta que poucos gastam o tempo desse jeito, correndo riscos para fotografar a gente, mostrar nossa precariedade e daí obter ajuda para nos trazer comida, cobertas, atenção. Foi quando pensei, cara, quando pensei na tua vida, que consegui me colocar no teu lugar. E tu não ganha nada com isso. Eu sei que não está atrás de recompensas, mas também não precisa sair no prejuízo. O que eu valorizo mesmo é o tempo, o tempo, cara, o teu tempo que também passou a ser nosso, eu penso muito nisso. Cara, aquele nosso papo sobre o cotovelo do Figueroa, lembra? Naquele jogo contra o Cruzeiro, o do nariz do Palhinha, nós dois estávamos no Beira-Rio. Aquela outra conversa que tivemos sobre saudade, lembra, tu falando da tua filha e eu do meu guri, puta merda, cara, isso não tem preço!

O quê, outra pergunta?, toma: fotografia é uma arte, pelo menos dizem, mas, é possível fazer arte com a nossa miséria? Consegues encontrar poesia, não sei porque mas sempre achei fotografia e poesia muito próximas, no nosso andar diário em busca da sobrevivência, catando material, aceitando sobras, e muitas vezes, pedindo? Tem alguma fotografia de nós, gente da rua, que tu pendurarias na sala da tua casa? Pediu, mandei logo três. Vai.

-Glauber Rocha filmou o velório do Di Cavalcanti. Era o que ele sabia fazer, era como conseguia expressar seus sentimentos, filmando. Claro que muitos o chamaram de oportunista, mas muitos já fizeram arte da própria dor, outros transformaram em arte a dor de muitos outros. Sigo e aumento esta resposta ao ingressar na segunda, depende do ângulo que se olhe, chega um pouco mais pra cá, mais pra lá, e pode se descobrir poesia em quase tudo, meu amigo. Glauber viu poesia num velório. Daqui a pouco vou mostrar umas fotografias que ainda estão aqui na câmera. Muitas eu penduraria na sala de casa. Esta aqui por exemplo, você e a Bela, no momento exato do salto dela. Também esta do gatinho nos ombros da mulher, este cara fazendo malabarismos, olha bem o rosto da mulher do gatinho nesta outra foto, seus olhos claros, a beleza dispensa o luxo; este homem com um pé com tênis e o outro pé, calcanhar machucado, com chinelo, vejo poesia e força, tem mais, e…

-Chega, me convenceste. Viste como a Bela está bonita? Pega ração pra ela, espero aqui.

Vou te pedir uma coisa, pro teu bem: não pensa na gente antes de dormir, não vale a pena, sei que te afeiçoastes por alguns, assim como alguns de nós gostam bastante de ti, mas não vale a pena, a gente é como aqueles filhotinhos de tartaruga que nascem na praia e precisam se arrastar até o mar. Muitos de nós morrem antes de alcançar o nosso mar, outros acabam engolidos pelo grande peixe crack. Acho que em cem, apenas um de nós sobrevive. Não queira fazer parte de nosso mundo, presta atenção no que vou te dizer agora: nós não percebemos o teu mundo, o teu mundo é nossa impossibilidade, entende?, a dor, o vazio, a brutalidade de nosso dia a dia se tornou nossa normalidade, tanto isso é verdade que duvido que algum dia um morador de rua tenha dito que iria a tua casa te visitar. Claro que não, inconscientemente nos consideramos indesejáveis, não chora, não é culpa tua…não é culpa tua…as tartaruguinhas, lembra? Pensa bem, Luís, elas precisam ir logo pro mar, mal saídas dos ovos, estão prontas ou iludidas?  Tudo em nossas vidas, Luís, tudo, mas tudo mesmo, acontece quando ainda não estamos preparados.