Da impossibilidade de fugir do vento – Por Luíz Horácio

Só brinca quem tem segurança, Luís, tu não sabias disso? Quando tu sais pela manhã com teu cachorro ele não pede pra parar, logo se deita na grama e rola de um lado pro outro? Faz isso porque se sente seguro. Repara nos que estão abandonados na rua, raramente brincam. São como nós, já vistes morador de rua brincando, contando piada, jogando futebol? E tem mais, segurança não é apenas parede e porta com chave, isso é síndrome do quelônio, esconde a cabeça dentro da carapaça em busca de proteção. Segurança também é amor, atenção, respeito. Sem isso não se tem dignidade. E esses três que acabei de mencionar não vivem nas ruas.

Faz dois anos que moro aqui embaixo deste viaduto, nunca tive problema, talvez o motivo seja o quartel do outro lado da rua, é quase uma segurança, um símbolo talvez. Estou sozinho, como tu podes ver, o que me acompanha são essas poucas roupas, um banco e esses bichinhos de pelúcia. Deve ser um desvio de caráter o apreço que tenho por esses brinquedos. Nesse tempo, nunca um soldado se prestou a atravessar a rua e vir conversar, eu tinha um cachorro, mas a via é movimentada e não preciso dizer o que aconteceu. Vou ficar mais um tempo por aqui, enquanto isso não terei outro cachorro, não quero arriscar. Solidão? Triste, mas é coisa que obriga a gente a se acostumar, fazer o quê? Pra ser bem sincero, nunca me senti só, tenho as minhas lembranças, estão bem vivas, tudo o que eu devia ter feito para o meu filho e deixei de fazer. Não fiz devido ao vício, Luís, hoje minhas lembranças são cobranças raivosas.

Meu filho? Nunca mais vi, acho que pensa que estou morto. Tantos carros passam por aqui, pode ser que num deles esteja o meu guri. Seis anos a idade dele quando saí de casa.

Foi assim: eu era tesoureiro de um banco, Agustin, este o nome do meu guri, tinha quatro anos, quando comecei uma história com uma colega da faculdade.

Psicologia, eu estudava psicologia, estava no quinto semestre quando a conheci, eu lia muito, Luís, muito. Pretendia me tornar psicólogo, mas o que me encantava era a filosofia. A filosofia é o conhecimento obrigatório, evita que a charlatanice guie tua vida.

Cara, tu bem que podia fazer uma pesquisa na internet pra mim, coloca o nome do meu guri, não deve ter muitos, esse é um nome uruguaio, a mãe dele é uruguaia e ele nasceu em Montevidéu. Voltando…voltando, um dia a mãe dele descobriu meu caso, elas sempre descobrem. Separamos. Logo caí na gandaia, Luís, festa e festa, muita bebida, cocaína, todos os dias. As consequências tu sabes, sem emprego, sem família, sem amante, e o pior; dependente da droga. Resultado, faz dezessete anos que estou na rua. A gente acostuma com tudo Luís, banho de vez em quando, conviver com o cheiro da urina, não vou me afastar para urinar no meio da noite, aí, logo pela manhã, vem o sol e o cheiro se torna forte, cagar é mais complicado, geralmente entro num contêiner e faço lá dentro, nem sempre tenho papel higiênico. O pior de tudo, pior que chuva, é vento, não se consegue fugir do vento, Luís. Vou colocar o cobertor que tu me deste neste saco plástico, se molhar já era. Isso é um bem precioso.

Mas eu já tinha te contado esse episódio, vamos em frente. Sabe o que eu gosto em ti? Não fazer perguntas, ou melhor, fazer pouquíssimas. Numa conversa o que interessa sempre aparece. No mais é interrogatório. Não vai me fotografar? Só porque não tenho cachorro. Cara, eu gosto quando tu me fotografas, significa interesse pela minha triste figura; lembro da primeira vez, tu divulgaste num site e várias pessoas passaram a vir aqui, conversar comigo, trouxeram coisas. Tem gente que pensa nos ajudar fazendo o que seria bom para elas. Não é por aí, me parece que a ânsia em ajudar supera o respeito.

Estranho, até então eu não era nada, quando me transformastes em fotografia passei a existir. Fiquei dias pensando nisso, foi quando me veio bem nítido a Poética, do Aristóteles, percebi que o teu prazer é resultado da minha tragédia, é um prazer específico, algo a ver com catarse, mas vamos pular essa parte. O interessante é que as pessoas se emocionam com tuas fotografias, e por que não se comportam do mesmo jeito diante da nossa situação? Acho que tem a ver com participar, a fotografia não cobra nada, mas o olhar de uma mulher, uma criança, qualquer um que viva na rua, ao mesmo tempo cobra e acusa. Na verdade, a fotografia é uma imitação, talvez seja por isso que mereça mais atenção. A tragédia, não me refiro apenas ao teatro embora também caiba o que direi; a tragédia, no caso das tuas fotos, representa prazer para os espectadores. Essas fotografias dos moradores de rua têm um compromisso com a tragédia e o prazer, já pensastes a respeito?  Pelo menos tu costuma agir com honestidade, posso te dar um beijo? Agora, se me der licença preciso sair para reciclar, começarei tarde por tua causa. Estou brincando, sabes que gosto da tua visita. O quê, tudo isso? Luís, isso aqui representa uma semana de trabalho bom. Tu sabes, um quilo de garrafa pet rende menos de dois reais, um quilo de latinha, dessas de refrigerante, cerveja; por volta de quatro reais. Não é fácil! E ainda escuto me chamarem de vagabundo, bandido, cachaceiro… Cara, eu quero ler a Poética novamente, consegue, por favor? Quero pedir mais uma coisa, mas não é pra mim, na segunda ponte da Ipiranga, indo daqui, mora um amigo meu, ele tem um cachorro branco com umas pintinhas pretas, leva um cobertor pra ele? De casal. O cachorro dorme aconchegado. Conversa com ele, o nome é Jonas, um cara muito interessante, muito…

-O que o torna interessante, sua cultura ou suas experiências?

-Deixa de ser bobo, Luís, não é o que ele faz, o que ele diz, o que ele sabe, que o torna interessante, mas aquilo que, ao conhecê-lo, descobrirás…  Lembretes: o cobertor do meu amigo e Aristóteles. Vem cá, deixa eu te dar um beijo.